Prof. João Réus Santos
Gênese do crime organizado: A origem das facções brasileiras e sua evolução
A paisagem do crime organizado no Brasil não é um fenômeno recente ou isolado. Ela é o resultado de um processo histórico complexo, cujas raízes remontam ao período da intervenção civil-militar e têm como berço o sistema prisional brasileiro. A história por trás do surgimento da primeira facção, e das que se seguiram, é um labirinto que mistura repressão política, condições carcerárias precárias e a busca por sobrevivência e poder.
O berço da organização: A Ilha Grande e o Instituto Penal Cândido Mendes
Para entender o crime organizado brasileiro, é preciso voltar aos anos 70, mas não para o Carandiru em São Paulo como cenário inicial. O palco do nascimento da primeira facção criminosa do Brasil foi o Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande (RJ). O presídio, conhecido por sua superlotação e violência extrema, era um caldeirão de tensões. Sem a presença do Estado para garantir direitos mínimos ou segurança, a lei do mais forte prevalecia.
Foi neste ambiente inóspito que surgiu a Falange Vermelha, a primeira e seminal facção criminosa do Brasil. Seu nascimento está intrinsecamente ligado à convivência forçada entre presos comuns e presos políticos durante o regime militar, uma fusão que definiria para sempre o caráter do crime organizado nacional.
A influência dos presos políticos: A semente da ideologia
Durante a intervenção civil-militar (1964-1985), militantes de esquerda, integrantes de organizações de guerrilha armada como a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o MR-8 – que lutavam para derrubar o regime e instaurar um governo socialista – foram encarcerados no Cândido Mendes. Para isolá-los e puni-los, o regime os colocou em convívio direto com criminosos comuns.
Foi nesse ambiente improvável que ocorreu uma transferência crucial de conhecimento. Os presos políticos, endurecidos pela disciplina de organizações clandestinas e imbuídos de uma ideologia de resistência, trouxeram consigo conceitos fundamentais:
Coletividade e organização: a ideia de que um grupo unido e disciplinado é mais forte que indivíduos isolados, superando a lei do mais forte.
- Resistência ao Estado opressor: a visão do Estado não apenas como uma autoridade, mas como um inimigo a ser combatido e desafiado.
- Códigos de conduta e disciplina: a importância de regras internas, hierarquia e lealdade para a sobrevivência e coesão do grupo.
- Os criminosos comuns, por sua vez, possuíam o conhecimento prático das ruas e do crime. A fusão desses dois mundos deu à Falange Vermelha sua característica única: a estrutura e o discurso de uma organização revolucionária com os objetivos imediatos do crime comum. O objetivo inicial não era dominar o tráfico de drogas, mas criar um "Estado paralelo" dentro do presídio, garantindo proteção mútua e sobrevivência contra os abusos do Estado e a violência interna.
- Do embrião ao comando: A evolução para o Comando Vermelho (CV)
- A Falange Vermelha era, portanto, o embrião. Seu nome, que remete a uma formação militar compacta, descrevia perfeitamente seu propósito inicial: uma frente unida. No entanto, com o tempo, à medida que a organização crescia, se espalhava para outras prisões – notadamente o Carandiru em São Paulo – e consolidava seu poder em escala nacional, seu caráter e seu nome evoluíram.
- O termo Comando Vermelho (CV) surgiu então para designar essa nova fase da organização. Ele simbolizava a transição de uma "falange" ou frente unida localizada para um "comando" centralizado, mais complexo e com ambições nacionais. Foi sob essa nova denominação que a facção solidificou seu lema "Paz, Justiça e Liberdade", ecoando o sincretismo ideológico de suas origens, e expandiu suas atividades, principalmente o controle do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. A Falange Vermelha não era uma facção rival, mas a semente da qual brotou o Comando Vermelho.
- O efeito dominó: O surgimento das demais facções
- A consolidação do Comando Vermelho não passou despercebida. Seu poder crescente dentro do sistema prisional gerou duas reações principais: a fragmentação interna e a reação de outros grupos que se sentiam ameaçados.
- Primeira cisão: O Primeiro Comando da Capital (PCC)
- Na década de 1990, a hegemonia do CV começou a ser contestada. Em 1993, um grupo de detentos transferidos do Carandiru para a Casa de Custódia de Taubaté, insatisfeitos com a condução do Comando Vermelho, decidiu fundar uma nova organização. Sob a liderança de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, nascia o Primeiro Comando da Capital (PCC). O PCC adotou e aprimorou a estrutura do CV, mas com uma disciplina ainda mais férrea e um foco explícito no controle do tráfico de drogas e na cobrança de "taxas" de seus membros. A facção surgiu com o objetivo declarado de combater a opressão do Estado e vingar o Massacre do Carandiru (1992), tornando-se a principal força rival do CV.
- A Reação no Rio: O Terceiro Comando (TC) e o Amigos dos Amigos (ADA)
- No Rio de Janeiro, fortaleza do Comando Vermelho, a expansão da facção gerou resistência. Em 1989, traficantes de áreas como Jacarepaguá e Tanque, cansados da dominação do CV, fundaram o Terceiro Comando (TC), inicialmente como uma aliança para se defender. Anos mais tarde, em 1998, outra dissidência do CV daria origem ao Amigos dos Amigos (ADA), facção que herdou o nome de uma expressão usada por um dos fundadores do próprio CV, que gostava de dizer que eram "todos amigos dos amigos".
- Conclusão: Um legado de violência e poder
- A saga das facções brasileiras é uma lição sobre as consequências não intencionais de políticas de segurança falhas e condições carcerárias degradantes. O que começou como a Falange Vermelha no Cândido Mendes, um movimento de autopreservação fertilizado pela disciplina e ideologia de presos políticos de grupos de guerrilha, transformou-se no Comando Vermelho, um império criminal de escala continental.
- O CV, fruto direto daquela fusão em uma época sombria, não apenas sobreviveu como se multiplicou, gerando rivais que copiaram e adaptaram seu modelo. Hoje, a guerra entre PCC, CV, ADA e outras facções menores define a dinâmica da violência em grande parte do Brasil, controlando rotas de drogas, armas e, tragicamente, a vida dentro e fora das prisões. Entender essa origem, e o papel crucial dos presos políticos nela, é fundamental para qualquer tentativa de desmontar essa complexa e mortal teia de poder.
- Nota do Redator: Este artigo buscou elucidar as origens históricas. A situação atual das facções é dinâmica e complexa, com alianças e conflitos em constante mudança.




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