Prof. João Réus Santos
Arte, liberdade de expressão e democracia: Reflexões sobre limites e responsabilidades

O que é arte e qual sua função?
A arte é uma manifestação humana que transcende a mera estética, funcionando como um espelho da sociedade, um canal de expressão de ideias, emoções e críticas. Ela pode ser encontrada em diversas formas – pintura, música, literatura, teatro, humor – e tem o poder de provocar, inspirar, questionar e, por vezes, incomodar. Sua função primordial é comunicar, seja para entreter, educar, desafiar normas ou promover reflexão. A arte não se limita a agradar; ela pode chocar, satirizar ou denunciar, sendo um instrumento de transformação social e cultural.
No entanto, a arte não existe em um vácuo. Ela dialoga com o contexto em que é produzida, influenciando e sendo influenciada por valores, crenças e normas sociais. Por isso, surge a questão: até que ponto a arte deve ser livre, e quando ela deve ser limitada?
A arte deve ter limites? Deve ser restrita por faixa etária ou temática?
A questão dos limites da arte é complexa e envolve um equilíbrio delicado entre liberdade criativa e responsabilidade social. A arte, por sua natureza, muitas vezes desafia convenções e testa limites, o que pode gerar desconforto ou ofensa. Impor restrições rígidas, como censura prévia ou classificações etárias excessivamente restritivas, pode sufocar a criatividade e limitar o potencial transformador da arte.
Classificações etárias e temáticas podem ser úteis em contextos específicos, como proteger crianças de conteúdos inadequados ou orientar o público sobre a natureza de uma obra. Por exemplo, um show de comédia com humor ácido pode ser sinalizado como inadequado para menores, permitindo que o público faça escolhas conscientes. No entanto, essas classificações não devem servir como pretexto para proibir ou silenciar expressões artísticas. A arte deve ter espaço para existir em sua diversidade, desde que não incite diretamente à violência ou à discriminação, conforme estipulado por leis que protegem a dignidade humana.
O que é liberdade de expressão? A quem ela serve?
A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição Brasileira (Artigo 5º, inciso IX) e por declarações internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo 19). Ela assegura que indivíduos possam expressar suas opiniões, crenças e ideias sem medo de repressão, desde que respeitem os limites legais, como a proibição de discursos que incitem ódio, violência ou discriminação.
A liberdade de expressão não deve ser vista como um privilégio exclusivo de indivíduos ou grupos específicos, mas como um direito universal que sustenta a democracia. Ela não existe para atender interesses particulares, mas para garantir que todas as vozes, mesmo as minoritárias ou controversas, tenham espaço para se manifestar. Contudo, esse direito não é absoluto. Quando a expressão ultrapassa o limite da crítica ou sátira e passa a violar a dignidade de pessoas ou grupos, como em casos de racismo ou homofobia, o ordenamento jurídico pode intervir para proteger os direitos fundamentais.
O que é democracia?
A democracia é um sistema de governo no qual o poder emana do povo, seja diretamente, seja por meio de representantes eleitos. O termo vem do grego demos (povo) e kratia (poder), significando "governo do povo". Na Antiga Grécia, particularmente em Atenas (séc. V a.C.), a democracia era direta: cidadãos (excluindo mulheres, escravos e estrangeiros) participavam diretamente das decisões políticas na Assembleia. Esse modelo, embora inovador, era limitado por sua exclusividade e pela escala restrita da pólis.
Na democracia moderna, o modelo predominante é o representativo, no qual os cidadãos elegem representantes para legislar e governar. Inspirada por ideais do Iluminismo, como os de Rousseau e Montesquieu, a democracia contemporânea enfatiza a separação de poderes, a proteção de direitos fundamentais e a igualdade perante a lei. Diferentemente da democracia ateniense, a moderna busca incluir todos os cidadãos, independentemente de gênero, raça ou classe, embora enfrente desafios como desigualdades sociais e polarização política.
A democracia não é romântica
É fundamental compreender que a democracia não é um sistema romântico ou utópico, projetado para agradar a todos. Sua essência está em garantir a liberdade, não em satisfazer desejos individuais ou coletivos. A democracia existe para proteger o direito de todos expressarem suas opiniões, crenças e identidades, mesmo quando isso gera conflitos ou desagrada determinados grupos.
Além disso, a democracia moderna não se limita a atender a vontade da maioria ou do grupo que detém o poder em determinado momento. Um de seus pilares é a proteção das minorias, garantindo que seus direitos fundamentais – como liberdade de expressão, religião e igualdade – sejam respeitados, independentemente de quem esteja no comando. Esse princípio é crucial para evitar a "tirania da maioria", um risco apontado por pensadores como Alexis de Tocqueville, em que a vontade da maioria pode oprimir grupos minoritários. Assim, a democracia moderna é um equilíbrio entre a soberania popular e a proteção de direitos individuais, promovendo a coexistência de vozes diversas.
Os três poderes e a invasão de competências
A democracia moderna brasileira, como em muitos países, é estruturada em três poderes independentes e harmônicos, conforme preconiza Montesquieu:
• Poder Legislativo: Responsável por criar, alterar e revogar leis, além de fiscalizar o Executivo. No Brasil, é composto pelo Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado).
• Poder Executivo: Executa as leis e administra o país. É representado pelo Presidente da República, governadores e prefeitos, dependendo do nível de governo.
• Poder Judiciário: Julga conflitos, interpreta as leis e garante sua aplicação conforme a Constituição. Inclui tribunais como o Supremo Tribunal Federal (STF).
A invasão de competências ocorre quando um poder interfere nas funções exclusivas de outro, comprometendo o equilíbrio democrático. Por exemplo, quando o Judiciário legisla ao criar normas por meio de decisões judiciais (ativismo judicial), ou quando o Executivo tenta influenciar o Legislativo com medidas provisórias excessivas, a harmonia entre os poderes é ameaçada. Esse equilíbrio é essencial para evitar abusos e garantir a democracia.
O caso Léo Lins, Porta dos Fundos e o Movimento LGBTQIA+: Limites da arte e liberdade de expressão
Recentemente, o humorista Léo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão por piadas consideradas preconceituosas contra diversos grupos, como negros, LGBTQIA+, indígenas e pessoas com deficiência, proferidas em seu show “Perturbador” (2022). A decisão judicial, baseada nas Leis nº 7.716/1989 (crimes de preconceito) e nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), argumentou que as piadas ultrapassaram os limites da liberdade de expressão, promovendo discriminação e violando a dignidade humana. A sentença também destacou o alcance do vídeo no YouTube (3 milhões de visualizações) como agravante.
Por outro lado, o grupo Porta dos Fundos enfrentou críticas por seu especial de Natal de 2019, que retratava Jesus Cristo em um contexto satírico, ofendendo setores cristãos. Apesar das controvérsias, o grupo não enfrentou condenações criminais, e o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu tentativas de censura, reforçando a liberdade artística. Da mesma forma, eventos como a Parada Gay, que por vezes utilizam figuras religiosas em performances, como Jesus Cristo retratado como gay, causam controvérsia, mas são protegidos como manifestações culturais e políticas.
Ponderações sobre os casos
Todas essas manifestações artísticas ou performances, de uma forma ou outra, podem ferir a sensibilidade de determinados grupos. O humor de Léo Lins, a sátira do Porta dos Fundos e as performances do Movimento LGBTQIA+ tocam em temas sensíveis, como religião, identidade e preconceito, que inevitavelmente geram reações polarizadas. Contudo, é essencial reconhecer que a liberdade de expressão inclui o direito de consumir ou não consumir essas formas de arte. O público pode escolher assistir a um show de comédia, um vídeo satírico ou participar de um evento cultural, exercendo sua autonomia.
No entanto, essa liberdade encontra limites em contextos públicos e irrestritos, onde o acesso não é controlado. Um exemplo emblemático é a exposição Queermuseu, realizada em Porto Alegre em 2017, que gerou controvérsia por exibir obras com temas sensíveis, como nudez e questões de gênero, em um espaço acessível a alunos de escolas sem restrição etária. A falta de classificação indicativa ou orientação prévia gerou críticas, pois expôs crianças a conteúdos potencialmente inadequados, sem o consentimento de responsáveis. Esse caso ilustra que, em espaços públicos, a liberdade artística deve ser balanceada com a responsabilidade de proteger públicos vulneráveis, como menores, por meio de orientações claras ou restrições de acesso.
A liberdade de expressão deve ser assegurada para ambos os lados, independentemente de questões políticas, partidárias ou ideológicas. Tanto os criadores de conteúdo quanto aqueles que se sentem ofendidos têm o direito de expressar suas visões. A democracia não privilegia uma ideologia em detrimento de outra; ela garante que todas as vozes coexistam, mesmo em tensão. Assim, enquanto Léo Lins, Porta dos Fundos e o Movimento LGBTQIA+ têm o direito de criar e se expressar, o público tem o direito de criticar ou optar por não consumir essas manifestações, desde que isso não resulte em censura ou violência.
Coexistência
A arte e a liberdade de expressão são pilares da democracia, mas não são absolutas. Elas devem coexistir com o respeito à dignidade humana e à igualdade, valores igualmente fundamentais. A democracia, longe de ser um sistema romântico, existe para garantir a liberdade de todos, incluindo as minorias, e não apenas para agradar a maioria ou o grupo no poder. Os três poderes desempenham um papel crucial nesse equilíbrio, que pode ser comprometido quando um invade a competência do outro. Casos como o de Léo Lins, Porta dos Fundos, o Movimento LGBTQIA+ e a exposição Queermuseu mostram que a arte e a expressão, embora livres, devem considerar o contexto em que são apresentadas, especialmente em espaços públicos. A liberdade deve ser assegurada para todos, independentemente de ideologias, promovendo o diálogo e a responsabilidade como bases para uma sociedade plural e democrática.
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